domingo, 11 de maio de 2014
blablablá da casa amarela de abril, por escobar
"Blablablá na Casa Amarela: sábado"
O Blablablá é um projeto d´A Casa Amarela – Espaço Cultural, nascido da ânsia pelo entendimento do que acontece nos territórios marginalizados. Baseados nessa premissa, buscamos a excelência de idéias daqueles que se propõem a pensar o fazer cultural sob essas condições. Não somos modestos, queremos as histórias e memórias, a argúcia e a sagacidade, a ousadia e a sensibilidade. Queremos a revolução não estacionária, a evolução orgânica e constante.
Para tanto, a edição de abril do Blablablá ousou contemplar os movimentos (ou melhor, as movimentações) culturais que se processaram no último quarto do século passado, em especial na região periférica de São Paulo e que desaguaram nesses treze anos da nova centúria. O seleto time que conseguimos prospectar para discutir essa pantomima tinha ninguém menos que Tião Soares e Almir Bispo (poeta e ator histórico militante cultural da região do Itaim Paulista, além da organização Movimento Cultural Penha. Representado por Patrícia Freire, o MCP lançou o livro Movimentações pela Cultura, um rico “painel dos movimentos culturais pela região leste de São Paulo”, como atesta o subtítulo da obra.
Após o brinde e os números musicais iniciais, com Lígia Regina e Eder Lima exibindo o primor lírico usual e depois a cereja do bolo com Edvaldo Santana, que, em visita aos familiares e amigos de São Miguel, aproveitou para dar um rasante sobre a Casa, os diálogos foram iniciados. Historiadora de formação, Patrícia principiou contando um pouco de sua história e a ligação com o MCP. Apresentou, a seguir, a obra que estava sendo lançada: “a gente precisava entender a nossa militância dentro do contexto histórico”, explicou.
Quem a sucedeu foi Almir Bispo, ator, poeta e militante cultural desde a década de 1980, que explanou a forma como o Centro Cultural Itaim foi criado. “Na época”, ele disse, “o Mário Covas veio no aniversário do Itaim, a gente aproveitou pra reinvidicar e ele disse sim. A partir daí, passamos a cobrar de maneira enfática e constante. Dois anos depois inauguramos o Centro”, afirmou. Explicando assim, parece que foi tudo fácil. Mas não. O poder público, segundo ele, voltou atrás e travou o processo diversas vezes, mas a perseverança na luta por um bem que toda a comunidade almejava é que permitiu o êxito da conquista. “Se hoje está aberto ou de portas fechadas, se funciona bem ou mal, isso eu não sei, faz tempo que não vou lá. Mas na época conseguimos o principal, conquistamos o Centro Cultural para o bairro”, sentenciou.
“A política pública é quem determina, não o fazer cultural” (Tião Soares)
Provocado por este escrevinhador a fazer uma analogia entre as movimentações culturais e as manifestações de junho de 2013 pelo Brasil, Tião Soares, com a perspicácia de sempre, iniciou sua preleção afirmando que “desde a década de 1930 já rolavam movimentos, tutelados pelo Estado”. Doutor em Ciências Sociais e com um caudaloso histórico de produtor cultural, Tião estabeleceu uma linha cronológica para elucidar a perspectiva sobre como os movimentos (ou movimentações), estabeleceram paradigmas que foram sendo apontados e superados, dentro dessa linha do tempo. Para tanto, faz uma análise sensível das mudanças ocorridas junto com esses ventos de mudanças que ocorriam junto à abertura política que o país enfrentava no fim dos anos 70. Disse “o sindicalismo dos anos 70 e 80 era autônomo em relação ao sindicalismo dos anos 30 e 40. É nesse contexto que nesse período surgem os Clubes das Mães, que na zona leste fez nascer o Sistema Único de Saúde (SUS). Concomitantemente, é também na mesma região que nasce o Movimento Pela Moradia, os Mutirões, o Movimento de Creche”.
Edvaldo Santana, sentado na primeira fila, completa: “E o Movimento das Favelas”. Tião concorda e arremata, “quanto à analogia com as manifestações de junho último, temos que considerar que há por aí muito coletivo de uma pessoa só, o que é uma incongruência, um fragmento da movimentação anterior
Eder Lima, professor e músico da Casa, o interpela: “no período da abertura houve uma visibilidade dos movimentos sociais mas na área da cultura houve um arrefecimento de forças”. Novamente Tião concorda e complementa: “a gente hoje observa essa fragmentação nessas manifestações, em que a política pública é quem determina, não o fazer cultural”.
“a indústria cultural vai deixar de existir com essas novas tecnologias”( Almir Bispo).
Júlio Marcelino, ativo militante cultural e social na região da Penha e também um dos autores do livro Movimentações Pela Cultura, explicita “a Cultura, na visão de alguns gestores públicos, ainda é apenas uma ´cereja´”. Almir Bispo confere: “a indústria cultural vai deixar de existir com essas novas tecnologias”.
Retomando a palavra, Tião diz “os editais diferem dos movimentos orgânicos, como o Movimento Popular de Arte (MPA) e outros. Isso é provisoriedade, não é regular ou horizontal. O cara tá nesses CEUS, nesses Pontos de Cultura, que nem robô, onde muitas vezes impera uma estética sem ética”.
Danize Dagmar, uma das depoentes do livro que estava sendo lançado, pediu para explicitar a importância das relações dentro dessas movimentações culturais que estava sendo discutidas. Segundo ela, “as mulheres da periferia não apareciam, mesmo dentro desses movimentos”. Mesmo assim, ainda de acordo com seu depoimento “ver o MPA abrir mão de dinheiro do Estado foi uma felicidade, a gente viu que não estávamos sós, como a voz que clamava no deserto”. Ainda assim, Almir rebateu “a gente tem que buscar o edital. É uma conquista, um direito”. Cláudio Gomes, poeta desde o início do MPA, discorreu que “essa política de editais e prêmios é igual aos tempos coloniais: ´vamos alegrar o feitor que ele nos leva pra festa´”.
O avanço do debate indica que há uma leitura bastante heterogênea do que é política cultural, cultura e política pública de cultura. Tião Soares identifica essa fissura na discussão e pontua com outra provocação: “também há pessoas que não sabem a diferença entre administração e gestão”. A discussão avança carregada de proposições e de observações sobre acertos e erros da militância. Tanto que em dado momento, Akira Yamasaki, poeta, produtor e também um dos gestores da Casa Amarela, imprime sua marca, quando explica o Congresso de Movimentos Culturais, que estava sendo questionado naquele momento. Disse ele, “esse Congresso foi uma idéia minha, quando trabalhei na Secretaria Muncipal de Cultura. E tomei muita pedrada por isso. Era pra ter tido outros, o segundo, o terceiro, mas daí travou, parou tudo”. Ao que Tião placidamente contemporizou: “a cultura é conservadora, a arte é que é transgressora”.
“a história oral é um mecanismo essencial, pois a “história oficial” é sempre escrita pelo vencedor” (Patrícia Freire)
O Blablablá caminhava pra mais de duas horas de intensos e acalorados diálogos, quando propus a sua finalização e então Patrícia nos apresentou este apêndice: “nosso trabalho foi pautado na história oral. Na zona leste, a história oral é um mecanismo essencial, pois a ´história oficial´ é sempre escrita pelo vencedor”. Se quisermos saber uma verdade mínima dos fatos, não podemos esquecer esse detalhe.
Para avançar pra mais de três horas de evento, então ganhamos um show acústico de Edvaldo que, de posse do violão-banquinho-microfone, destilou sua poesia refinada para o público que continuava ali, sem arredar os pés. E quando convidou Lígia Regina para cantar com ele Canção Pequena Para Ninar Gente Grande, poema do Akira musicado por ele, a Casa Amarela pareceu ficar suspensa numa nuvem, com uma aura evanescente, equilibrada numa luz entre o sol e a lua.
Qualquer tentativa de explicar essa sensação vai dar em nada. Só quem estava ali saberá entender esse delírio.
Escobar Franelas.
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