quinta-feira, 11 de março de 2010

Meus poetas preferidos (09)


Tiago Araujo

Tiago Araujo é muito jovem ainda. Baixista, contista, poeta e compositor, o que o diferencia de outros jovens é que ele foi abençoado com a sagrada centelha da poesia e a capacidade de inquietar com suas palavras, para dar prosseguimento a uma linhagem de poetas do quilate de Severino do Ramo, Cláudio Gomes, Sacha Arcanjo, Gilberto Braz e outros, que há mais de trinta anos constroem a história que conheço da poesia na região de São Miguel.
Grandiosa e transbordante como um rio amazônico, a poesia de Tiago Araujo é composta de domínios de técnicas essenciais para escrever e afluentes de esperanças, mágicos lirismos, ásperas ternuras e contínua fantasia. Mas são os afluentes de desencantos e desesperos, onde ironias amargas e deboches sarcásticos realizam vôos rasantes, que revelam a sua generosidade incondicional com os desprotegidos, velhos e crianças preferencialmente.
Acho que Tiago Araujo está pronto para ser o grande poeta que é.

Akira Yamasaki.



Edmundo

Com um amarelo sobre a pele que lhe dá ares de filme banda B, Edmundo é um velho não menos esquisito que todos os velhos esquisitos. Os olhos, abismos de lama, só são vistos por quem chega bem perto. Quem o vê de longe pensa se tratar de uma sombra desdobrada em curvas de papel. De perto, confirmam. É feito de papel. Não de qualquer tipo, papel de linho envelhecido e tratado com reagentes químicos que asseguraram a durabilidade até hoje.
Filho de estrangeiros, cresceu na região do Horto e foi só depois da morte dos pais que descobriu a natureza de sua fisiologia. Os pais o amavam. Amavam muito mesmo. Aliás, Edmundo não sabe se nasceu de papel ou se se transformou em papel depois da morte deles. Sabe apenas do que é efêmero. E das tardes que passa lendo obituários no único jornal que ainda os publica. Um velho como todos os outros. Só que feito de papel.
Todas as noites, passa na rua do velório e valendo-se de sua condição, esconde-se nas sombras. Invisível. Atento aos corpos que saem do velório para o crematório, Edmundo marca um xis em uma tabela desenhada nas costas da mão esquerda. E isso é o que mais gosta de fazer, já nem se lembra desde quando. (Será que sempre fez isso, ou foi só desde que virou papel?). Gosta da rua do velório. Odeia cadáveres.
Sente falta dos pais. Na verdade, desde a última colherada.
Edmundo não é canibal e orgulha-se de nunca ter fumado nada. Nem cigarro, nem charuto, nem cachimbo, nem mesmo um baseadinho na adolescência. Seria perigoso, afinal é feito de papel. Ainda assim, tem muitos cinzeiros. Recebe muitos amigos que fumam. E gosta disso.
Em casa, os cadernos da infância, tantos os seus como os dos filhos e netos, são queimados com vodka em panelas de inox.
Muitas vezes, alegando campanhas em prol do meio ambiente, pede aos vizinhos que lhe dêem livros antigos, diários, agendas, cadernetas, jornais velhos, para que os leve para a reciclagem. As pessoas nunca questionam ou negam o que ele pede, apenas respeitam-no.
Os amigos e a família não esperam nada dele, a não ser que morra logo. Não pela herança, não pela doença, não pelas histórias que conta, não pelo trabalho que dá, não por nada. Amam-no. Mas preferem vê-lo morto, pois sabem que ele é de papel e que isso não dura.
Uma vez por semana, visita o crematório do Horto e, graças à sua tabelinha e a um conhecido que troca às cinzas do defunto por cinzas de cachorro, não sai de lá sem pelos menos dois ou três quilos daquilo que, acredita, voltará a ser um dia. Não coleciona urnas mortuárias, não dá tempo. Além disso, odeia cadáveres, em qualquer estado.
Edmundo, um velho não tão esquisito como todos os velhos esquisitos, se alimenta de cinzas.

TIAGO ARAUJO


Deus protege

Morreu uma criança atropelada, não se salvaria mesmo que quisesse. Foi pra junto de Deus. Deus protege bêbados, mulheres e crianças. Animais também. Estatisticamente, atropelamentos são tão fatais quanto levar dez gols em uma partida de futebol. Disseram que na hora, dois coleguinhas estavam no ônibus. Pareciam bonecos de cera quando viram a bola banhada de carne e o creme que se grudou no asfalto.
Não era coitadinho, não. Roubava, pedia, cheirava, pedia, batia carteira, pedia, xingava a polícia e o cacete.
O pai lhe deu toda a liberdade que precisava, o pôs no mundo. A mãe só lhe pedia que fosse direito. Que nunca roubasse sem precisão, que nunca fumasse sem motivo, que nunca cheirasse sem fome, que nunca batesse carteira de pretos, que nunca xingasse a polícia de muito perto.  
Nasceu uma criança atropelada. Nasceria de qualquer jeito. Abençoado por Deus, bêbados e capivaras, era uma criança. Fato. Muito mais provável era ser macaco, aranha, boneco, qualquer outro bicho. Mas era criança. Jogador de rua, morador do futebol. Jogava pelado na rua, disseram, e marcaria dez gols na cara dos dois coleguinhas, não fosse o ônibus ficar fazendo cera no asfalto. Sonhava que a bola era um sonho, sem creme.
Pra escola nunca foi, nunca quis. Uma vez, espancou uma professora com mais dez coleguinhas. Onze. Saíram da escola e desceram com ela pra Baixada do Sapo, sob uma saraivada de socos na buceta e bicas na canela, era onde alcançavam. Deus nunca protegeu tanto uma mulher. No mesmo dia, dois coleguinhas foram atropelados. Puta treta. Ônibus é foda. Os moleques se misturaram igual creme de sonho no asfalto. Sonhando que escapou, ele nem viu que morreu.
            Foi um tempo para a igreja, viu o Senhor e os cambal. (E quem não vê?). Saiu logo em seguida, ficou cego de um olho numa lança, quando pulou o quintal da professora pra pegar a bola. Mandou tudo pra casa do caralho. No futebol, era juiz por imposição do olho que faltava e pela maldição dos que não vêem. (E também porquê ninguém queria um meio cego no time).
Não morreu uma criança atropelada. Não morreria nunca, ainda que quisesse. Deus protege bêbados, mulheres e crianças. Aliás, estatisticamente, um atropelamento fatal é menos provável que marcar dez gols em uma partida. (Coisa de animal). Jogava uma pelada na rua, quando o ônibus atropelou dois bonecos de cera que se misturaram feito creme de sonho no asfalto. Eram seus coleguinhas.

TIAGO ARAUJO            
 

7 comentários:

  1. Putz, Akira! O que é que eu vou ter coragem de dizer depois disso? Muitíssimo obrigado! (é pouco, mas as palavras me faltaram agora!)

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  2. Akira, parabéns por homenagear e dar mais luz ainda a esse escritor que transborda talento, e do qual me orgulho de ser amiga. Só ele para criar personagens tão cheios de simbologias como esse Edmundo.
    E parabéns também pelo seu blogue e pela luta em prol da poesia.

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  3. Quanta ironia,,Tiago se passa por Pelayo e cria para Edmundo um novo Campo de Estrelas,em pleno Horto Paulistano.
    Parabéns.

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  4. Parabéns Akira por seu blog, um canal de semeadura dos verdadeiros artistas.
    E Tiago, sem palavras para expressar o quanto gosto dos seus textos. bjs

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  5. O principal atributo simbólico do Bode é o da força sexual masculina. Na Grécia antiga, servia de montaria para os deuses e na Índia era consagrado ao deus do fogo. Nas narrativas bíblicas, muitas vezes o bode é citado como o animal que o povo oferecia a Deus em sacrifício, para obter o perdão de seus pecados (deriva daí o termo “bode expiatório”). Na Idade Média, o bode assumiu uma caracterização mais negativa e foi associado às práticas de bruxaria porque servia de montaria para as feiticeiras.

    Hoje em dia, o Bode vaga pelas ruas sujas do centro de São Paulo, testemunhando arte e criando testemunhas.

    Bardo bodesco, rogai por nós!

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  6. Não sei falar em belas palavras, portanto quero de forma simples dar os parabéns ao tiago, por seu trabalho; e agradecer pelos momenos inspirados tanto nas aulas que mto me ajudaram quanto nos papos como amigo.
    te desejo mto sucesso e inspiração.
    abç!!
    Lamas

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  7. Valeu mesmo galera... o que seria da vida sem os amigos?

    Tiago

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