quinta-feira, 19 de maio de 2016

melancia


em mil novecentos e sessenta eu tinha oito anos de idade,
os dias áridos e longos nunca chegavam ao fim e eu trazia
aqui dentro mil revoltas sem razões aparentes, motivos de
surras corretivas e constantes do meu pai, devido pirraças
e malcriações, maldades com plantas e bichos e por bater
nos meus irmãos menores, tipos de coisas das quais não
tenho nenhum orgulho;

então quando aprendi a xingar meu pai de corno, viado e
filho da puta, as surras viraram espancamentos medonhos,
de criar bichos e de se ficar mijado no chão;

em mil novecentos e sessenta meu pai trabalhava noite e
dia de meieiro nas terras incertas de um espanhol chamado
périco garcia que tinha uma filha chamada dulcinéia, em
lucélia na alta paulista, onde eu maldizia o tempo por não
passar, quando ouviu falar que melancia tinha rendido
lucro seguro e fácil na safra passada, grana abundante que
muita gente que vivia atolada na penúria tinha lavado a
égua com essa espécie de lavoura e andava posando de
bacana, inclusive diziam, desfilando pra cima e pra baixo
de trator da massey & fergusson e caminhonete zero bala;

meio mordido pela mosca branca da possibilidade de um
ganho fácil mas com um pé na frente e outro atrás, como
qualquer bom japinha, meu pai reservou naquele ano ao
lado dos tradicionais cultivos de feijão, milho e algodão,
de quiabo, abóbora e amendoim, um áspero e inútil trecho
de terra, um oitavo de alqueire se tanto, para experimentar
uns pés de melancia coquinho, como se arriscasse uns
trocos na milhar e centena do primeiro ao quinto e ainda
cercasse com um duque de dezenas, por via das dúvidas,
e me fez encarregado de cuidar da plantação rastejante;

até hoje é um milagre misterioso para mim, os pés de
melancia terem vingado e se espalhado verdejantes no
meio daquelas pedras e tocos ressequidos mas a verdade
é que um dia elas surgiram e cresceram do mesmo jeito
e tamanho, dezenas delas, irmãs gêmeas de tão iguais,
com exceção de uma, a maior, mais exuberante e mais
cobiçada fruta que eu tinha visto na minha vida de dias
infelizes e demorados, onde eu ficava torcendo o tempo
todo para que ela madurasse urgentemente;

naqueles dias lentos e exasperantes, enquanto eu ajeitava
com carinho as melancias com os cabos para cima como
meu pai ensinara para que crescessem uniformes e eu o
observava com afeto e orgulho de filho, todos os dias eu
perguntava a ele se a minha melancia já estava no ponto
e todos os dias ele respondia que ainda não, que estava
verde ainda, que tenha paciência, akira, mas um dia não
aguentei mais a curiosidade e a gula e com um canivete
afiado talhei a bitela de cima a baixo e a coitada ainda
estava branca por dentro, as sementes nem tinham se
formado e eu levei a mais injusta das surras na hora da
janta daquele dia, por desobediência ou talvez porque
meu pai estava puto da vida devido o preço da melancia
que tinha caído no mercado;

então na noite de humilhação e revolta fugi correndo para
o meio das plantações e cego de dor e raiva, com minhas
mãos sedentas de vingança arranquei um monte de pés de
melancia que no dia seguinte estavam mortos e murchos e
quando ri do desespero do meu pai tentando replantar no
chão duro e seco, as raízes sem vida, não deu outra e aí
sim, levei a mais feroz e definitiva surra da minha vida, de
soco,de pau, de pontapé, de cinta e do que ele tivesse na
mão e mais ele me batia, mais eu o xingava de viado filho
da puta;

dois dias depois, como eu não falasse, não comesse, não
me mexesse, não bebesse e nem xingasse, não chorasse,
mijasse ou cagasse, meu pai me examinou, nem tive força
para fugir, e percebeu que meu braço estava quebrado e
com um tranco o colocou no lugar e improvisou uma tala
de madeira para colar a fratura e minha mãe passou iodo,
álcool e mercúrio nos meus hematomas e então eu virei
um menino calado que nunca mais sorriu e de repente os
dias começaram a passar tão rapidamente que eu não
conseguia mais acompanhar.

akira – 21/04/2016.

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